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Possíveis impactos da tese do marco temporal sobre os povos indígenas isolados

Placa de demarcação da TI Uru Eu Wau Wau com perfurações por tiros. | Fonte: Povo Amondawa.
Placa de demarcação da TI Uru Eu Wau Wau com perfurações por tiros. | Fonte: Povo Amondawa.

Publicado por Opi

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O Supremo Tribunal Federal está às voltas com uma votação de crucial importância para os povos indígenas do Brasil. Embora retirada de pauta (estava prevista para o dia 28/10/2020) ela segue exigindo máxima atenção. Ocorrerá no âmbito do Recurso Extraordinário n. 1.017.365. Embora o processo diga respeito a um caso relacionado ao povo Xokleng, da Terra Indígena Ibirama La Klaño, o Ministro Luiz Edson Fachin aproveitou uma temática tratada no processo para suscitar o que se conhece no mundo jurídico por Repercussão Geral. Repercussão Geral é um instrumento jurídico utilizado para uniformizar a interpretação constitucional quando ela vem causando divergências no âmbito da sociedade ou do próprio Poder Judiciário. Entendeu a Suprema Corte ser necessária a fixação de uma interpretação constitucionalmente adequada ao  estatuto da posse indígena de terras no Brasil e afirmou que, como a matéria não se encontra  pacificada na sociedade e nem mesmo no Poder Judiciário, a Corte deve “debruçar-se sobre a  efetiva tutela constitucional dos direitos das comunidades indígenas à posse e usufruto das  terras tradicionalmente ocupadas”. [1]

Apesar disso, o Opi entende que a divergência interpretativa agora denominada como marco temporal, mais do que decorrente da necessidade de fixação de uma interpretação constitucionalmente adequada ao  estatuto da posse indígena de terras no Brasil, é decorrente de uma necessidade artificialmente criada pela insatisfação de setores conservadores da sociedade nacional. Há diversos estudos que vem demonstrando que a gênese da tese do marco temporal não está na Assembleia Nacional Constituinte, como afirmou o Ministro Ayres Britto no Voto da homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (Petição. 3388), mas é, antes, fruto da reação conservadora ao avanço democrático estabelecido pela Constituição Federal de 1988.

Diante do que ora se apresenta no STF, ou seja, a tese segundo a qual vincula-se a demarcação das terras à ocupação indígena em 05/10/1988, é preciso considerarmos o impacto disso sobre os povos indígenas que ainda vivem em situação de isolamento[2]. Para esta análise devemos nos pautar por algumas vulnerabilidades a que estão sujeitos esses povos, especialmente, a vulnerabilidade política e a vulnerabilidade territorial.[3] Avancemos por partes, pois.

Inicialmente, é preciso entendermos que a política indigenista adotada pelo Estado brasileiro desde 1987 possui como diretriz primordial o respeito à autodeterminação e às formas de vida desses povos ou segmentos de povos (diretriz conhecida como “não-contato”), como forma de garantir sua autonomia e sua integridade física. Isso porque o histórico dos contatos ocorridos antes de 1987 revela que contatá-los, mesmo como estratégia de proteção, é mais prejudicial do que não contatá-los e garantir a proteção do seu território. Do ponto de vista epidemiológico, durante o processo de contato e, também, no período pós-contato, essas populações estão sujeitas a um conjunto de fatores, individuais e coletivos, que fazem com que sejam mais suscetíveis a adoecer e morrer em função, principalmente, de doenças infecciosas, pelo fato de não terem memória imunológica para os agentes infecciosos corriqueiros na população brasileira e não terem acesso à imunização ativa por vacinas. [4]

Frente a esta realidade, a da primazia do não contato, o processo de demarcação das terras indígenas de povos isolados se diferencia dos demais processos de demarcação de terras indígenas, nos quais a participação dos povos indígenas é intensa e direta. Assim, as demarcações de territórios de indígenas isolados só podem se basear em relatórios de expedições de localização e pesquisas realizadas por experts (indígenas não isolados e indigenistas) que seguem uma metodologia desenvolvida ao longo de décadas[5] e que culminou na atual Política Brasileira de Localização e Proteção de Povos Indígenas Isolados, oriunda da Portaria 1047, de 29 de agosto de 1988.

Veja-se, portanto, que se atualmente já tem sido difícil – por inúmeras razões que não caberiam nesse texto – realizar a demarcação de qualquer terra indígena, o advento do marco temporal viria a significar um grau a mais de dificuldade no processo demarcatório e, para o caso dos isolados, dois graus a mais, diríamos. Isso porque os povos isolados não participam diretamente do processo administrativo de demarcação de suas terras pelo fato notório e óbvio de se encontrarem isolados. Assim, caso o marco temporal venha a ser aprovado, recairá sobre o Grupo Técnico que realiza estes trabalhos o dificílimo ônus de comprovar a localização exata da posse indígena de povos isolados no dia 05 de outubro de 1988.

Sendo o “não contato” uma diretriz e um preceito fundamental da política pública voltada a essas populações, não há qualquer razoabilidade em se falar, portanto, em se determinar o exato local de sua posse em 05 de outubro de 1988, uma vez que as expedições realizadas pelos mencionados experts dão conta de demonstrar os locais por onde esses povos caminham, caçam, pescam, constroem moradias, coletam materiais para produzir utensílios, etc, mas não de demonstrar, exatamente, a localização de sua “posse” em 05 de outubro de 1988.  O que, aliás, constitui muito mais uma incapacidade do Estado em compreender as dinâmicas da presença destas populações do que uma inconsistência sobre sua presença.

Ao fim e ao cabo, o que tais expedições demonstram é exatamente o que deveria importar para todos os povos indígenas, não apenas para os isolados, ou seja, a forma de ocupação tradicional do território, independentemente da ideia que se usa agora denominar de tese do fato indígena ou tese do marco temporal, segundo a qual “a data de verificação do fato em si da ocupação fundiária é o dia 5 de outubro de 1988, e nenhum outro.” [6]

Em função da condição mesma do isolamento decorre a vulnerabilidade política dessas populações, segundo a qual os povos isolados não se manifestam por meio dos mecanismos de representação comumente aceitos pelo Estado. Suas formas de “expressão” devem ser compreendidas a partir de uma chave de alteridade tal que a própria ação de isolamento “diz” o que desejam. A alteridade encontra guarida nos dispositivos Constitucionais de garantia de uma sociedade pluriétnica e nos fundamentos e objetivos da República e se reflete não apenas na ausência de participação formal dos povos indígenas isolados nos mecanismos democráticos de representatividade como, também, na dificuldade da comprovação de sua existência e presença[7].

Dentro do conjunto de elementos probatórios comumente exigidos pelo Estado nos processos da comprovação da presença de indígenas isolados há uma preeminência das fontes documentais tais como fotos, áudios, documentações oficiais acerca de vestígios. Tais exigências nem sempre são compatíveis com o contexto do isolamento, mas tal incompatibilidade não deve ser capaz de invalidar, a priori, a comprovação da existência dessas populações. Relatos, bibliografias históricas e fontes de história oral são cruciais para garantir a existência futura de povos ou segmentos de povos indígenas isolados cuja existência ainda não foi comprovada. Considere-se, por exemplo, a existência, para o Estado, do povo indígena isolado que vive na Terra Indígena Kawahiva do Rio Pardo, no norte do Mato Grosso. Em 1988 não havia comprovação sequer de sua existência. Nem por isso a metodologia da Política de Localização e Proteção de Povos Indígenas Isolados descartou a sua possível presença, visto que as expedições coletam indícios, relatos, rastros, restos de alimentos, etc. capazes de sustentar a manutenção de um estudo com vistas a comprovar a existência de um povo indígena isolado ou descartá-la. A comprovação da existência do povo isolado Kawahiva se deu somente em 1999, o que, inclusive, veio demonstrar a eficácia da metodologia em não descartar os que eram apenas indícios. Que impacto teria, se aprovado, o marco temporal sobre esta e outras terras indígenas com similar condição?

Seria absurdo cogitar que, em sendo aprovado o marco temporal, não haveria uma caça e destruição dos vestígios capazes de comprovar a existência dessas pessoas em áreas onde ainda não se logrou demarcar a terra indígena? Parece-nos que não. As medidas administrativas das Restrições de Uso são a única ferramenta capaz de garantir a integridade física de indígenas nessa situação. Todas foram criadas pós 88. O marco temporal provocaria uma verdadeira tragédia nesse contexto.

Atualmente, são 20 as terras indígenas com presença confirmada de povos ou segmentos de povos indígenas isolados.[8] A confirmação da presença de grande parte desses povos ocorreu após 1987, havendo algumas exceções, a exemplo de alguns isolados que habitam o Vale do Javari, os Mashco, no Acre, os Awa, no Maranhão. Para além disso, importa salientar que a existência de muitos povos isolados (86 registros) ainda não se encontra confirmada mediante as exigências formais do Estado. Isso significa dizer que esses povos não existem? Absolutamente! Apenas que não foram ainda coletados dados suficientemente capazes de atender às exigências metodológicas que permitam afirmar ou descartar, com segurança jurídica, a sua existência. Ademais, caso a sua existência venha a ser comprovada, será bastante difícil, para a grande maioria das situações, determinar o exato local de sua “posse” em 5 de outubro de 1988.[9]

            Nesse sentido, para que haja a garantia dos direitos territoriais dos povos indígenas como um todo, e ainda mais dos povos isolados, há que haver uma confiança tanto na técnica antropológica (opção técnica do Estado brasileiro) como no trabalho realizado pela Fundação Nacional do Índio (opção política do Estado brasileiro para a análise dessas questões).

As portarias emitidas pelo Ministro de Estado da Justiça, e anuladas pelo STF com base na tese do marco temporal, fundamentaram-se em complexos estudos técnicos elaborados em estrita observância ao disposto no decreto nº. 1.775/96 e na portaria/MJ nº. 14/96. Essas normativas estabelecem rígidas regras a serem observadas na elaboração de um Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação. Tais portarias são, portanto, fruto de extensos trabalhos técnicos, teóricos e de campo, elaborados por grupos coordenados por antropólogos de qualificação reconhecida e que realizam estudos de natureza sociológica, etno-histórica, ambiental e fundiária.

O mérito administrativo do procedimento de demarcação de terras indígenas, visto por uma perspectiva pluralista, está além das condições de análise do poder judiciário, que não goza de condições técnicas, nem políticas, para afirmar, nos moldes exigidos pela legislação, a legitimidade ou não de uma ocupação tradicional indígena. O processo de produção probatória típico do processo judicial não é capaz de substituir os dados levantados pelo grupo técnico que realizou o relatório circunstanciado de identificação e delimitação de uma terra indígena. A ingerência do judiciário sobre o mérito do procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas não é razoável, pois conhecimentos específicos e técnicos, alheios à área jurídica estão presentes nos estudos preparatórios de demarcação. O processo de produção probatória típico do processo judicial não é capaz de substituir os dados levantados pelo grupo técnico que realizou o RCID de delimitação de uma terra indígena.[10]

O mais adequado, do ponto de vista dos princípios e garantias constitucionais, é exigir da Funai que siga procedimentos justos em que seja possível aos interessados identificar a legitimidade e a equidade da decisão tomada. Conforme já vem sendo feito pela fundação, é importante que os fundamentos de suas decisões sejam verificáveis por meio da publicidade dos atos tomados e da garantia do contraditório administrativo. Para isso existem os parágrafos 7° e 8° do art. 2°, do decreto nº. 1.775/96. No exercício do contraditório, ainda que discordem das razões adotadas, os interessados devem receber a resposta que demonstre os caminhos seguidos para se chegar às conclusões adotadas. À luz do que precede, deve o judiciário, em vez de exigir que o poder executivo anule portarias declaratórias de terras indígenas, exigir que o órgão indigenista oficial goze de condições de trabalho capazes de assegurar o rigor técnico dos trabalhos, a resposta adequada aos contraditórios e a demonstração disso quando exigido.[11]


[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Petição n°. 3388. Ministro Relator Carlos Ayres  Britto, 2009. Disponível em:  <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/pet3388CB.pdf>. Acesso em  24.09.2018. 

[2] Na definição oficial do Estado brasileiro, povos indígenas isolados são povos ou segmentos de povos indígenas que, sob a perspectiva do Estado brasileiro, não mantêm contatos intensos e/ou constantes com a população majoritária, evitando contatos com pessoas exógenas a seu coletivo (BRASIL. Portaria Conjunta n° 4.094, de 20 de dezembro de 2018. Disponível em: <http://138.68.60.75/images/portarias/dezembro2018/dia28/portconj4094.pdf>. Acesso em 26 de maio de 2020).

[3] AMORIM, Fabrício. Povos indígenas isolados no Brasil e a política indigenista desenvolvida para efetivação de seus direitos: avanços, caminhos e ameaças In. Revista Brasileira de Linguística Antropológica 8 (2). UnB, 2016 e também Huertas, B. Corredor Territorial de Pueblos Indígenas en Aislamiento y Contacto Inicial Pano, Arawak y otros. FENAMAD 2015

[4] RODRIGUES, D. A. Proteção e Assistência à Saúde dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato no Brasil. OTCA: São Paulo, 2014. p. 80. Disponível em: <https://boletimisolados.trabalhoindigenista.org.br/wp-content/uploads/sites/3/2017/08/Saude _PIIRC_-Douglas-Rodrigues.pdf>. Considere-se, inclusive, que as variáveis presentes num processo extremo de contato, por mais que haja preparo técnico do Estado não dão conta de fatores imprevisíveis o que nos leva a defender a política do não-contato, e ainda,  não significa dizer que a autonomia indígena quanto a decisão de fazer o contato não deva ser respeitada. Isso significa também dizer que a política do não-contato não flerta com a ideia do contato controlado como forma de permitir aos indígenas o acesso às tecnologias e “benefícios” da sociedade nacional. Não se pode olvidar, ademais, todos os impactos, para além do epidemiológico, decorrentes de um processo de contato.

[5] SANTANA, Carolina. Quando os isolados somos nós. Disponível em: <https://povosisolados.com/2020/04/01/isoladossomosnos/>. Acesso em 15 de outubro de 2020.

[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Petição n°. 3388. Ministro Relator Carlos Ayres Britto, 2009.  Disponível     em:

<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/pet3388CB.pdf>. Acesso em 24.09.2015.

[7] Observe-se, inclusive, que a vulnerabilidade política impede que eles possam vir a comprovar o esbulho possessório, exigência admitida como forma excepcionar a tese do fato indígena.

[8] Informe n. 1 do Opi – Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de recente Contato. Disponível em:<https://povosisolados.com/2020/02/11/informe-observatorio-opi-n-01-02-2020-povos-indigenas-isolados-no-brasil-resistencia-politica-pela-autodeterminacao/> . Acesso em 15 de out. de 2020.

[9] Inclusive, há que se considerar, para algumas situações, que a prática do “trekking permanente” tem sido, precisamente, uma das estratégias de sobrevivência mais eficazes adotadas pelos povos isolados. Em muitas ocasiões, eles abandonaram práticas anteriores de habitação permanente ou inclusive de agricultura (‘slash and burn’) para permanecer em itinerância constante. Ou seja, abandonaram aldeias e roçados para continuar em formas novas de sobrevivência. A esse respeito ver APARICIO, Miguel. (2020). Itinerários vegetais, ou da inconstância da aldeia banawá. Maloca: Revista De Estudos Indígenas, 3, e020015. https://doi.org/10.20396/maloca.v3i.13482

[10] SANTANA, Carolina Ribeiro. (2018). “Direitos territoriais indígenas e o marco temporal: o STF contra a Constituição”. In: ALCÂNTARA, Gustavo Kenner, MAIA, Luciano Mariz, e TINOCO, Lívia Nascimento (Orgs.). Índios, direitos originários e territorialidade. Brasília: Editora ANPR, pp. 451-479.

[11] Ibidem.

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