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Nota de Repúdio sobre a Portaria da Funai que Nomeia Servidores Ligados ao Agronegócio para Coordenar o GT de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Piripkura, ocupada por grupo indígena isolado, no Mato Grosso

Publicado por Opi

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As organizações abaixo assinadas vêm a público manifestar repúdio a Portaria Funai nº 345, de 15 de junho de 2021, que constituiu Grupo Técnico (GT) com o objetivo de realizar os estudos multidisciplinares de natureza etno-histórica, antropológica, ambiental e cartográfica da área denominada Terra Indígena Piripkura, localizada nos municípios de Colniza e de Rondolândia, no estado do Mato Grosso.Fonte: Filme “Piripkura”

A criação deste GT é urgente, necessária e, inclusive, determinada judicialmente. Segundo dados do ISA, entre agosto de 2020 e março de 2021 foram 1.025,59 hectares da TI foram desmatados, colocando a TI Piripkura no primeiro lugar do ranking das TIs mais devastadas do país no último ano. Tendo em vista essa situação de incremento do desmatamento da Terra Indígena e no contexto da Ação Civil Pública nº 0005409-02.2013.4.01.3600, proposta pelo Ministério Público Federal em face da União e da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, tal GT foi constituído por força de Decisão exarada pela Vara Cível e Criminal da Justiça Federal de Juína-MT no final de abril de 2021.

Todavia, compô-lo com servidores da Funai, reconhecidamente ligados aos interesses do agronegócio ­- anti-indígenas, portanto – nos leva a repudiá-lo, em virtude do gritante conflito de interesses que se sobrepõe às funções institucionais da Fundação.

Como antropólogo coordenador do GT, foi nomeado Joany Marcelo Arantes, atual Coordenador-Geral de Promoção da Cidadania da FUNAI. Joany é graduado em geografia pela Universidade de Várzea Grande, tem “especialização em antropologia” pela Universidade Sagrado Coração (sendo orientado por Claudio Eduardo Badaró) e está cursando atualmente uma pós-graduação latu sensu em “drones e vants”. Entre 2007 e 2013, foi Secretário Parlamentar do falecido Deputado Federal Homero Pereira (PSD-MT), que presidiu a Frente Parlamentar Agropecuária (mais conhecida como “Bancada Ruralista”). Como autônomo, entre 2014 e 2019, realizou assessorias antropológicas relacionadas a “questões indígenas” no Estado de Mato Grosso. Em resumo, o próprio Curriculum Vitae é uma prova de que tal servidor não é “antropólogo” (pois não possui pós-graduação strictu sensu em Antropologia) e não tem competência técnica nem trajetória científica relevante para coordenar estudos de natureza etno-histórica e antropológica sobre os Piripkura.

Evandro Marcos Biesdorf, por sua vez, é graduado em engenharia agronômica e atualmente é o Coordenador Geral de Geoprocessamento da FUNAI. Entre 2015 e 2017, fez mestrado em Fitotecnia (Produção Vegetal), tendo defendido uma dissertação na Universidade Federal de Viçosa sobre “Alelopatia do Sorgo Granífero sobre a Soja e as Plantas Daninhas”. Atualmente cursa doutorado em Fitotecnia (Produção Vegetal) nas mesma Universidade. Como Coordenador Geral de Geoprocessamento da Funai, trabalhou na elaboração da Instrução Normativa nº 09, que cria mecanismos para a legalização de grilagem em Terras Indígenas no Brasil.

André Luiz Welter, por sua vez, é geógrafo de formação e atualmente é o Coordenador Geral de Assuntos Fundiários da FUNAI. Cursa atualmente uma pós-graduação em Georreferenciamento de Imóveis Rurais pela Unyleya. Conforme as informações constantes em seu Currículo, atua na FUNAI na “assistência técnica nos estudos para desbloqueio de manifestação de interesse em Glebas Públicas Federais com demanda de regularização fundiária. Atuação na defesa técnica da aplicação da I. N. 09/2020”. Entre 2017 e 2018, foi Chefe do Escritório de Regularização Amazônia Legal em Mato Grosso. Ainda no currículo do mesmo, consta o seguinte: “Reconhecido Gestor e Servidor Público pela ampla defesa e articulação na regularização fundiária na Amazônia Legal, por ser pautado pela ética, legalidade e reconhecimento da meritocracia do setor produtivo; Título de Cidadão Honorário Guarantanhense (Guarantã do Norte-MT); – Título de Cidadão Honorário Xinguense (São José do Xingú-MT); Título de Cidadão Canaense (Nova Canaã do Norte – MT); – Moção de Aplausos (Nova Canaã do Norte-MT); e Moção de Gratidão (Colíder-MT)”.

Com base nessas informações sobre o perfil acadêmico e a trajetória profissional dos três servidores nomeados para o GT, é evidente o conflito de interesses envolvendo a nomeação de tais pessoas para um GT de identificação e delimitação de qualquer Terra Indígena, tanto mais a Piripkura, com particularidades tão marcantes.

A Terra Indígena Piripkura é ocupada pelo povo Piripkura, falante de uma língua tupi-kawahiva. Sobreviventes de massacres impetrados por invasores no contexto do violento processo de colonização do noroeste de Mato Grosso e Rondônia nos anos 1970 e 1980, os Piripkura hoje se resumem a três pessoas. Há relatos também sobre a presença de um grupo isolado maior de pessoas Piripkura no interior da Terra Indígena. Atualmente, este território é protegido pela Frente de Proteção Etnoambiental Madeirinha-Juruena, unidade vinculada à Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato da FUNAI. Reconhecida pelo Estado Brasileiro em 2008, atualmente a Terra Indígena Piripkura está amparada em uma Portaria da FUNAI (nº 121, de 18 de agosto de 2018) de Restrição de Uso da área, de caráter provisório, com previsão de vencimento em setembro de 2021.

Nenhum dos servidores nomeados para o GT tem experiência com a política pública de proteção de povos isolados e de recente contato. Esclarecemos que tal prática de nomeação de profissionais não habilitados para comporem GTs de Identificação e Delimitação de Terras Indígenas fere o disposto no artigo 2º do Decreto nº 1.775/1996.

Soma-se a isso o fato de que tal prática já foi objeto de recomendação feita pela 6ª Câmera do MPF à FUNAI. Na recomendação, o MPF cobra que não sejam indicados para os grupos técnicos responsáveis por esses estudos “servidor ou colaborador que tenha trabalhado, de forma remunerada ou não, para as partes contrárias aos interesses fundiários indígenas, notadamente fazendeiros e empresas ocupantes de áreas reivindicadas por povos indígenas”. Finalmente, alguns GTs constituídos pela Funai recentemente foram impugnados pela Justiça Federal pelas mesmas razões e envolvendo algumas das mesmas pessoas aqui mencionadas, em particular o Coordenador do GT.

Em resumo, por meio desta Portaria, a “Nova Funai”, dirigida pelo Delegado Marcelo Xavier, apresenta clara ameaça de violação dos direitos territoriais indígenas garantidos pela Constituição Federal de 1988 e reitera a velha, retrógrada política colonial de tentativa de extermínio de povos indígenas isolados no Brasil e de esbulho de suas terras tradicionais.

Brasil, 24 de junho de 2021.

Assinam essa nota:

ABIA – Articulação Brasileira de Indígenas Antropóloges
ANAÍ – Associação Nacional de Ação Indigenista
APOINME – Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo
CCONS / UFPR – Centro de Estudos da Constituição da UFPR
Comunidade Indígena Karajá de Minas Gerais
COIAB – Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira
CTI – Centro de Trabalho Indigenista
Instituto AmazoniaAlerta
ISA – Instituto Socioambiental
Levante de povos originários de Minas Gerais
MORHAN – Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase
Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Etnicidade/Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPE
OPI – Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato
PINEB/UFBA – Programa de Pesquisas sobre Povos Indígenas do Nordeste Brasileiro
Survival International
UNIVAJA – União dos Povos Indígenas do Vale do Javari

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André Lopes – pesquisador do Cesta/USP

Marta Cardoso – pesquisadora do Cesta/USP

Thiago Mota Cardoso – UFAM

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