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STF ordena que governo brasileiro tome medidas para garantir a vida e os territórios dos povos indígenas isolados

Uma das ordens do STF obriga a Funai a manter protegida a Terra Indígena Tanaru, onde viveu e morreu o chamado índio do buraco, o único sobrevivente de um genocídio
Uma das ordens do STF obriga a Funai a manter protegida a Terra Indígena Tanaru, onde viveu e morreu o chamado índio do buraco, o único sobrevivente de um genocídio

Publicado por Opi

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Decisão do ministro Edson Fachin reconhece a omissão e a negligência da Funai de Bolsonaro e o risco de genocídio e etnocídio para povos isolados e de recente contatos

Em decisão histórica, o Supremo Tribunal Federal (STF) concordou com todos os pedidos feitos pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e ordenou que o governo brasileiro tome todas as medidas necessárias para garantir a proteção da vida e dos territórios com presença de povos indígenas isolados e de recente contato. A decisão do ministro Edson Fachin foi na Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 991 e elenca sete obrigações impostas à União, à Fundação Nacional do Índio (Funai) e ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

O Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (Opi) apoiou a Apib na elaboração da ADPF 991, com subsídios técnicos e jurídicos, e considera a ação um marco na defesa dos direitos desses grupos indígenas e também uma continuidade do trabalho do fundador da organização, o indigenista Bruno Pereira, assassinado em junho de 2022 no Vale do Javari.

Os povos indígenas isolados são aqueles que não mantém contatos intensos ou constantes com pessoas de fora de seus coletivos. Geralmente optam por viver longe da sociedade externa por terem sofrido perseguições e massacres durante os processos de ocupação e colonização na região amazônica. Os povos de recente contato são aqueles que mantém contato ocasional, intermitente ou permanente com segmentos da sociedade nacional mas conservam significativa autonomia sociocultural. Historicamente esses povos sofreram genocídio e etnocídio e estão sujeitos a vulnerabilidades que colocam em risco sua própria existência.

Na ação, a Apib sustentou que permanece o risco de genocídio e etnocídio diante da política do governo brasileiro de abertura das terras indígenas à exploração comercial e da facilitação do ingresso de missionários em seus territórios – um missionário, Ricardo Lopes Dias, chegou a ser nomeado para coordenar a área de isolados da Funai. Para Edson Fachin, nenhuma das informações prestadas pela presidência da Funai e pela presidência da República ao contestar a ação judicial foi capaz de negar essa realidade. O ministro disse “compreender que nenhuma das medidas necessárias à preservação da cultura e sobrevivência dos povos isolados e de recente contato foram tomadas, em especial aquelas destinadas ao registro confirmado de um novo povo isolado e as medidas imperiosas para a garantia de sua existência”.

Desproteção

Fachin também entendeu que o governo federal atuou intensamente para desfazer as proteções das terras de povos isolados, deixando de renovar as portarias de restrições de uso ou simplesmente não emitindo o instrumento em áreas com confirmação da presença de grupos isolados. Foi o que ocorreu nas terras indígenas Ituna-Itatá, no Pará e Piripkura, no Mato Grosso. “Efetivamente, a não ser quando instada por meio de ordem judicial, a Funai não atuou para a devida proteção dos povos isolados, por meio de instrumento que defenda suas terras de invasores, dentre os quais madeireiros ilegais, garimpeiros e narcotraficantes, expondo a vida dessa população ao indevido e inconsequente contato com a sociedade envolvente, colocando em risco a sobrevivência desses grupos vulneráveis”, diz a decisão.

“O discurso de que nenhuma terra indígena seria demarcada, bem como da necessidade de uma foiçada na Funai, evidentemente, incentiva essas incursões criminosas nos territórios indígenas e, somadas aos atos e omissões narrados na presente ADPF, evidenciam que as atuações pontuais de fiscalização e combate ao crime não têm sido suficientes para a efetiva proteção dos povos isolados e de recente contato, que convivem com um grave risco de genocídio e etnocídio”. Ministro Edson Fachin na decisão da ADPF 991

A decisão do STF lembra os assassinatos de Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips como “um fato tragicamente notório que explicitou ao mundo a situação calamitosa da TI Vale do Javari, exposta ao risco das atividades exploratórias ilegais na terra indígena, e da atuação de criminosos a ameaçar indígenas e ativistas que trabalham na região”. Para o Supremo, “o discurso de que nenhuma terra indígena seria demarcada, bem como da necessidade de uma foiçada na Funai, evidentemente, incentiva essas incursões criminosas nos territórios indígenas e, somadas aos atos e omissões narrados na presente ADPF, evidenciam que as atuações pontuais de fiscalização e combate ao crime não tem sido suficientes para a efetiva proteção dos povos isolados e de recente contato, que convivem com um grave risco de genocídio e etnocídio”.

O STF cita a drástica redução do número de servidores efetivos da Funai, com um quadro de funcionários 50% menor para atuar na Amazônia Legal como uma das evidências do desmonte da política pública voltada para povos isolados e de recente contato. Essa situação, diz, desprotegeu os indígenas e também os defensores de direitos humanos. “Os assassinatos de Bruno Pereira, Dom Phillips, Maxciel Pereira dos Santos, todos na TI Vale do Javari, e tantas lideranças indígenas assassinadas na defesa de suas terras e dos territórios dos povos isolados, tem relação com essa situação de omissão do Poder Público nessas áreas”, diz o Supremo.

Violação generalizada

Para o ministro Fachin, a Apib conseguiu comprovar que há “violação generalizada” dos direitos humanos dos povos indígenas isolados e de recente contato, por causa de “omissão estrutural” do governo brasileiro. A decisão lembra que o próprio STF já reconheceu o desmantelo das políticas públicas voltadas à proteção dos povos indígenas e de seus territórios em outra ação, a ADPF 709, também movida pela Apib. E menciona a recente decisão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) que determinou que o Brasil garanta a vida e a integridade física de 11 integrantes da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja)

A decisão menciona outras duas ações apreciadas pelo STF – a ADPF 708, sobre a paralisação do Fundo do Clima e a ADIN 59, sobre a paralisação do Fundo Amazônia – que demonstram também a atuação insuficiente e ineficaz do poder público contra o aumento do desmatamento e da destruição da Amazônia, lar de quase todos os povos indígenas isolados e de recente contato brasileiros.

Entenda todas as medidas determinadas pelo STF

A primeira medida cautelar trata da proteção dos territórios e ordena que as portarias de restrição de uso – instrumento que impede a entrada e circulação nas áreas onde existem registros de isolados – terão que ser sempre renovadas antes do término de sua vigência, até a conclusão definitiva do processo demarcatório ou até a publicação de estudo fundamentado que descarte a existência de indígenas isolados. Durante o governo Bolsonaro se tornou corriqueiro a Funai tentar cancelar essas portarias e muitas vezes elas só foram renovadas por ordens judiciais.

A segunda medida cautelar determina que, no prazo de 60 dias, contados inclusive durante o recesso do poder Judiciário no final do ano, o governo apresente um plano de ação “para regularização e proteção das terras indígenas com presença de povos indígenas isolados e de recente contato”. Esse plano deverá necessariamente informar um cronograma de ação para expedições com vistas a confirmar e qualificar os registros de povos isolados que ainda não foram confirmados. O Brasil tem o maior número de registros desse tipo, 114, sendo que apenas 28 foram confirmados até agora.

O plano de ação também deverá conter dados detalhados sobre a quantidade de servidores lotados nas Frentes de Proteção Etnoambiental (FPEs) e nas Bases de Proteção Etnoambiental (Bapes), estruturas da Funai responsáveis pelo monitoramento e proteção dos territórios onde vivem povos isolados e de recente contato. O STF também quer detalhes sobre as condições estruturais e o funcionamento das bases. Além disso, o governo deve informar cronogramas para atividades de vigilância e fiscalização de todas as terras de isolados, assim como cronogramas para o andamento das demarcações dos territórios Pirititi, em Roraima, Tanaru, em Rondônia e Piripkura e Kawahiva do Rio Pardo, no Mato Grosso.

Sobre o território Tanaru, onde vivia o indígena conhecido como índio do buraco, último sobrevivente de um povo dizimado e que morreu de causas naturais este ano, a decisão do ministro Fachin ordenou que seja mantida a restrição de uso sobre o território. Fazendeiros da região chegaram a pedir à Funai que liberasse as florestas protegidas pelo indígena para exploração comercial. Pelo menos até o julgamento final da ADPF 991 pelo STF, a área permanecerá protegida. A decisão pede informações detalhadas também sobre a causa da morte e o sepultamento do indígena. A presidência da Funai tentou adiar os funerais dele e o sepultamento só aconteceu depois de ordem da Justiça Federal de Rondônia.

A decisão do STF ordenou ainda que a União assegure os recursos orçamentários necessários para concretizar o plano de ação para proteger as terras de isolados, incluindo rubricas específicas para a reestruturação física, abertura de novas unidades de proteção e contratação de pessoal para atuar nas FPEs e nas Bapes. Ao Conselho Nacional de Justiça, o ministro Fachin determinou que crie um Grupo de Trabalho, no âmbito do Observatório Nacional sobre Questões Ambientais, Econômicas e Sociais de Alta Complexidade e Grande Impacto e Repercussão, para acompanhamento contínuo de 10 ações judiciais relacionadas à efetivação dos direitos dos povos indígenas isolados e de recente contato. O objetivo desse acompanhamento é garantir a razoável duração desses processos.

A partir da decisão do STF, o governo tem prazo de 60 dias para emitir portarias de restrição de uso para todas as referências de povos indígenas isolados que estejam fora ou parcialmente fora de terras indígenas. Também deverá elaborar planos de proteção para essas áreas. Se o prazo não for cumprido, as restrições de uso serão determinadas pelo próprio STF. Com isso, áreas que estão desprotegidas por omissão ou negligência da Funai passarão a ser protegidas. É o caso dos isolados da região do Mamoriá, no sul do Amazonas, localizados desde 2021 e até agora sem nenhuma medida efetiva de proteção da área onde vivem.

“As autoridades devem reconhecer a forma isolada de viver como declaração da livre autodeterminação dos povos indígenas isolados, sendo o ato do isolamento considerado suficiente para fins de consulta, nos termos da Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas e da Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas, normas internacionais de direitos humanos internalizadas no ordenamento jurídico brasileiro” Ministro Edson Fachin na decisão da ADPF 991

Por fim, o STF determinou que as autoridades brasileiras devem reconhecer “a forma isolada de viver como declaração da livre autodeterminação dos povos indígenas isolados, sendo o ato do isolamento considerado suficiente para fins de consulta, nos termos da Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas e da Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas, normas internacionais de direitos humanos internalizadas no ordenamento jurídico brasileiro”. Esse reconhecimento é fundamental para o respeito ao direito de autodeterminação desses povos e impede tentativas de contato por missionários, por exemplo.

Veja a íntegra da decisão do STF

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