Demora na desintrusão, que está incluída entre os planos determinados pelo STF na ADPF 709, favorece os invasores
No dia 29 de janeiro, o cacique André Karipuna, liderança da Terra indígena Karipuna, em Rondônia, denunciou a existência de uma área desmatada na região sul do território em que os indígenas identificaram roubo de madeira, caminhões entrando e saindo e plantio de capim para criação de gado, o que é um indício claro de tentativa de grilagem pelos invasores. A porção invadida é a mesma onde existem relatos de avistamentos de indígenas isolados que ainda não foram identificados pelo Estado brasileiro.
Além disso, o trecho de acesso para a aldeia onde habita o povo Karipuna também conta com uma recente inserção de gado e novas áreas de desmatamento, em que há presença diária de invasores para o cultivo de roças, abrindo precedentes para outras iniciativas sem que haja a devida penalidade. A situação faz com que os moradores vivam com medo de transitar livremente em sua Terra, uma vez que os invasores andam em grupos e possivelmente armados.
A presença de indígenas isolados no território Karipuna é historicamente registrada na porção sul, que vem sendo bastante afetada pelas invasões. Possivelmente por causa das invasões ao sul, começam a surgir indícios da presença de indígenas isolados na área norte do território, cada vez mais perto da aldeia Panorama, onde vivem os Karipuna.
O povo Karipuna, falante da língua Tupi-Kawahiva, foi vítima de uma trágica redução populacional provocada pela invasão colonial, tendo sido totalizados 14 sobreviventes em 2004. Hoje contam com 62 pessoas, um número ainda bastante desafiador para a fiscalização de seu território. As invasões na TI Karipuna ocorrem incessantemente, de modo que operações de desintrusão são constantemente necessárias. O cacique André Karipuna ressalta que seu povo está há 8 anos ininterruptos realizando denúncias de invasão. Em 2018, Adriano Karipuna, um dos porta-vozes de seu povo, denunciou a situação que sofrem ao Conselho de Direitos Humanos da ONU. Preocupado com a continuidade da situação, ressalta que “Quando o marco temporal era apenas um Projeto de Lei, eles [os invasores] já estavam entrando sem receio nenhum. Agora que foi aprovado, estão reabrindo áreas antigas de invasão e inserindo cabeças de gado. Até mesmo agentes do governo, a exemplo da saúde indígena, estão com medo de ir em nosso território e sofrer uma emboscada”.
A situação alarmante fez com que a TI Karipuna fizesse parte do plano de desintrusão apresentado pelo governo, no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709, por determinação do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal. As ordens judiciais no bojo das Ações Civis Públicas n. 10006683-89.2020.4.01.4100 e 1000723-26.2018.4.01.4100 (MPF/RO) são para que as Forças Armadas, a Polícia Militar Ambiental, a Polícia Militar, os fiscais da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Ambiental, agentes do IBAMA e da Funai atuem no cumprimento dessa decisão. Em maio de 2023 a Polícia Federal atuou em 12 dos principais pontos de alerta de desmatamento da TI, e em 20 madeireiras no seu entorno. A ação pontual, contudo, é insuficiente diante da necessidade do território.
A Terra Indígena Karipuna abrange três municípios do entorno: a capital Porto Velho, Nova Mamoré, que faz fronteira com a Bolívia, e Buritis, além de seus distritos. Nos três municípios há madeireiras e serrarias a pleno vapor, aponta Adriano Karipuna: “Eu já sobrevoei a região e percebi que não há áreas de floresta privada no entorno, somente a Terra Indígena. Mas ela está pedindo socorro”. Na ação de 2023, foram apreendidos 7,4 mil m³ de madeira que apresentavam possíveis inconsistências entre as espécies encontradas e aquelas declaradas ao Sistema Oficial de Controle de Produtos Florestais (Sisdof). A dificuldade no rastreio da madeira retirada ilegalmente é motivo de grande preocupação. Segundo a liderança, é preciso atentar ao destino do produto: “imaginamos que estejam no comando pessoas com alto poder aquisitivo e político, porque ninguém é punido e as invasões continuam, muitas vezes se aproveitando de associações de produtores rurais como laranjas”.
O território Karipuna está localizado em uma área do estado de Rondônia com características ideais para a composição de um corredor de proteção socioambiental, conectando desde a Terra Indígena Karitiana, mais ao norte, a Floresta Nacional Bom Futuro, a Reserva Extrativista Jaci-Paraná, até a Terra Indígena Uru Eu Wau Wau, ao sul, passando pelo Parque Estadual Guajará Mirim. Uma rara oportunidade de conservação no estado proporcionalmente mais desmatado da região amazônica.
Caso a defesa desses territórios fosse bem sucedida, a área de floresta contínua auxiliaria na salvaguarda de povos indígenas isolados com existência ainda por confirmar por parte do Estado: os registros que constam na Flona do Bom Futuro e na porção norte da TI Uru Eu Wau Wau, além das informações ainda não contabilizadas pelo Estado a respeito da possível presença de isolados no interior da TI Karipuna.
Demora e violações
Apesar da inclusão entre as Terras Indígenas beneficiadas com plano de desintrusão na ADPF 709, até agora o processo tem sido moroso e insuficiente. As lideranças relatam dificuldade em dialogar com os órgãos competentes para compreender o planejamento em curso para as ações necessárias. As lideranças se expõem denunciando a situação e já sofreram ameaças e tentativas de emboscada e, mesmo assim, não conseguem resultados concretos. Os indígenas reivindicam que a fiscalização do território seja contínua, por via fluvial e terrestre.
Além da desintrusão, as lideranças pedem ações de reparação para manter o território livre de invasores e mitigar os danos causados até então, como a revegetação das áreas degradadas, a fiscalização contínua e atendimento psicológico para os moradores, que afirmam sofrer graves consequências emocionais com a situação de insegurança.
Outra forma de violência sentida pelos Karipuna decorreu do barramento dos rios no entorno pelas grandes centrais hidrelétricas. Após uma grande enchente do território em 2023, os indígenas conseguiram apoio para a reconstrução de casas em uma área mais segura, mas reivindicam assistência para a instalação de sistema hidráulico:
No mês de março do ano passado, a aldeia Panorama, na TI Karipuna, foi inundada pelas chuvas e o aumento da cota do reservatório do Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira, deixando todas as moradias alagadas e abaladas em sua estrutura. Diante deste fato, que impactou toda a vida do povo karipuna, a aldeia teve que ser deslocada para uma parte mais alta. Em carta, o povo Karipuna relata a situação.
“Com a ajuda da Embaixada da Alemanha e do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), foram construídas 12 novas moradias em lugar seguro, que necessitam do sistema de instalação hidráulica nas casas, pois as mesmas contam com um banheiro interno e uma área de serviço, com o saneamento pronto para entrar em funcionamento. Para isso, é necessário que o DSEI amplie a rede de distribuição de água para todas as famílias, pois no momento existe apenas uma caixa d’água, na antiga parte de ocupação da aldeia, e que não suprirá a necessidade das 12 famílias”, diz a carta.. Vários documentos foram enviados ao DSEI e ao MPF mas até o momento não há indicação de que será garantido o fornecimento de água para as famílias que foram obrigadas a se deslocar.
Por temerem a continuidade e reprodução das violências ambientais que vêm sofrendo, denunciam também os estudos recentes para a construção de uma usina hidrelétrica binacional do Brasil com a Bolívia na bacia do rio Madeira. A proposta sugere a construção de duas barragens, e a hidrelétrica seria instalada no encontro do igarapé Ribeirão com o rio Madeira, em Nova Mamoré (RO) e Nueva Esperanza (Bolívia), com potência superior às de Santo Antônio e Jirau, atingindo uma imensa população indígena e extrativista em seu entorno. Além dessa grande obra, estudos já estão sendo realizados para a implementação da usina hidrelétrica Tabajara, no rio Machado. Com as denúncias, as lideranças demonstram preocupação para além de seu território: “A sensação é de que nós povos indígenas estamos cercados”, afirma Adriano Karipuna, “me preocupo por toda a população que pode vir a ser afetada, como nós”.