A metodologia empregada pelo Estado brasileiro para a localização e confirmação (oficial) da presença de povos indígenas isolados, constitui-se em um processo de estudo que envolve pesquisas documentais, levantamento de relatos em campo, análise de imagens de satélite, sobrevoos e árduas expedições de localização nas regiões onde é apontada essa presença. Um dos maiores diferenciais da política brasileira em relação aos outros países da America do Sul ocorre, justamente, pelas expedições de localização, expertise do Brasil.
Essa expertise metodológica brasileira é herdeira das práticas expedicionárias realizadas historicamente pelo Serviço de Proteção aos Índios (1910-1967), pela Fundação Brasil Central (1943-1967) e pela própria Funai (criada em 1967). Entretanto, apesar das muitas similaridades com as expedições atuais, as antigas geralmente tinham um único objetivo: estabelecer contatos com os grupos isolados e integrar economicamente extensas áreas “inóspitas”, muito diferente dos objetivos atuais.
Como já apresentado no post “Histórico da Política de Proteção aos PII (Povos Indígenas Isolados)”, foi no final da década de 1980 que o Estado brasileiro adotou a política do “não contato”, reconhecendo na autodeterminação desses povos a melhor estratégia para a sua proteção, era o respeito às estratégias de isolamento.
As práticas estatais de proteção nessa época – sendo a demarcação de terras indígenas uma delas – eram fundamentadas pelo contato, pela interação. Para demarcar uma terra indígena, por exemplo, era necessária a realização de estudos pautados no diálogo com a população indígena. Ora, como fundamentar a delimitação de terras indígenas para povos ou grupos indígenas isolados sem se estabelecer qualquer tipo de contato ou interação? É possível?
No ínterim dessa discussão, no final da década de 1980, Rondônia passava por um período de desenvolvimento econômico vertiginoso. Programas tal como o Planafloro, financiado pelo Banco Mundial, oferecia créditos financeiros para colonização de extensas áreas e para a implementação de obras de infraestrutura. O desmatamento disparava, a violação aos direitos indígenas também.
Nessa época havia uma equipe da Funai (Equipe de Localização Guaporé) que atuava na localização de grupos indígenas isolados em Rondônia, próximo à fronteira com a Bolívia, no interior da Reserva Biológica (REBIO) Guaporé. A REBIO Guaporé estava completamente invadida por madeireiros. Inúmeras investidas de grileiros e posseiros ocorriam simultaneamente à exploração ilegal de madeira: era o caos.
Haviam fortes indícios da presença de um grupo ainda isolado nessa região, fato posteriormente confirmado por meio do trabalho dessa equipe da Funai. O povo isolado da REBIO vivia em constante processo de fuga, conflitos e rechaço a qualquer tipo de contato. Costumavam colocar centenas de estrepes (armadilhas) nas estradas utilizadas por madeireiros e nos caminhos utilizados por invasores. No meio desse caos socioambiental, a equipe de localização realizava constantes expedições na região, coletando e sistematizando todos os vestígios que encontravam sem, no entanto, realizar qualquer tipo e contato. A equipe encontrava tapiris, restos de alimentos, cultura material, caminhos, enfim, uma série de elementos que, reunidos (registrados e sistematizados), configuravam as características socioculturais e as dinâmicas de uso territorial do povo indígena isolado.
O contato, nesse caso, parecia ser a única solução, haja vista a intensa invasão que ocorria dos territórios dos isolados da REBIO Guaporé. Mas a equipe insistiu, resistiu, se recusou a tentar o contato, intensificou as ações de localização, realizou um minucioso estudo sobre as dinâmicas de ocupação dos isolados. Simultaneamente, realizava a ações de vigilância e fiscalização, algumas delas em conjunto com outros órgãos.
A insistência e o trabalho minucioso dessa equipe culminou, já na década de 1990, na demarcação da primeira terra indígena para usufruto exclusivo de um povo indígena isolado e na retirada de todos os invasores da região: era a Terra Indígena Massaco, sobreposta à REBIO Guaporé. O povo isolado dessa região mantém-se, até hoje, em situação de isolamento. A equipe de localização Guaporé provou ser possível, em campo – através de uma metodologia criteriosa – proteger um povo indígena isolado sem a necessidade do contato.
Posteriormente, a mesma metodologia foi aplicada para a regularização de outros territórios ocupados por grupos ou povos indígenas isolados, tal como a TI Kawahiva do rio Pardo, localizada no noroeste do Mato Grosso, embora a regularização fundiária dessa TI esteja no Ministério da Justiça aguardando o trâmite há alguns anos.
Atualmente, a Funai continua desenvolvendo essa metodologia, as expedições continuam sendo constituídas por extenuantes caminhadas na mata, geralmente em regiões de difícil acesso, e têm o objetivo de localizar, registrar e sistematizar vestígios e indícios da presença de grupos ou povos isolados em determinada região. Nos casos dos povos ou grupos cuja a presença é confirmada, são realizadas expedições de monitoramento e atualização dos dados sobre sua presença. Esse trabalho contínuo, criterioso e minuciosos, fundamenta o conhecimento oficial da presença de grupos ou povos indígenas isolados no Brasil.
Por: Fabrício Amorim / Equipe blog Povos Isolados.