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Enquanto o Brasil queima, o STF negocia direitos indígenas

Ilustração da Coiab
Ilustração: Coiab

Publicado por Opi

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Editorial do Opi. Por Helena Palmquist

Entre agosto e setembro de 2024, estamos vendo o Brasil queimar diante de nossos olhos. Incêndios criminosos se espalharam por quase todas as regiões do país. Apesar do foco principal das preocupações da mídia ter sido São Paulo, a fumaça chegou a várias grandes capitais brasileiras, como Brasília, Belo Horizonte e Rio de Janeiro. A situação é mais grave na região amazônica, onde os moradores das cidades passaram a conviver com alguns dos piores índices de qualidade do ar no mundo todo. Foi decretado estado de emergência no AmazonasAcreMato GrossoPará e Rondônia.

A fumaça sobe escurecendo os céus da região e levando o pânico a muitas Terras Indígenas. A TI Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia, foi o território com presença confirmada de povos indígenas isolados com maior número de queimadas ilegais. A TI teve focos de incêndio em três regiões e não conta com nenhuma estrutura de brigadistas indígenas para apoio. Conforme o Banco de Dados de Queimadas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (BDQueimadas/INPE), foram apontados 1.169 focos de calor pelo satélite VIIRS (sensor NPP) no período entre 05/08/2024 e 05/09/2024.

A floresta também ardeu na Mata do Mamão, em Tocantins, onde a FUNAI estuda a presença de isolados Avá-Canoeiro. A área, que abriga as Terras Indígenas Utaria Wyhyna/Iròdu Iràna, Inawebohona e Parque do Araguaia, já havia sido castigada pelo fogo em 2020 e registrou mais de 9.000 focos de incêndio entre agosto e setembro. Apenas na última TI, foram contabilizados 5.776 focos  entre 05/08/2024 e 05/09/2025.

Na Terra Indígena Capoto Jarina, no Xingu matogrossense, o brigadista Uellinton Lopes dos Santos, de 39 anos, morreu enquanto combatia incêndios florestais. Os focos de calor na TI entre agosto e setembro chegaram a 3.236. A ministra do Meio Ambiente Marina Silva afirma que os incêndios são criminosos e agravados pela estiagem severa, que é a maior dos últimos 74 anos no Pantanal e a mais intensa em 40 anos na Amazônia. Se o padrão de incêndios dos últimos anos não mudar, podemos estar decretando a sentença de morte de ambos os biomas.

O presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), Rodrigo Agostinho, explicou que o fogo é fruto da intenção de destruir florestas para grilagem de terras. “Todo fogo no Brasil é de ação humana”, disse. A Polícia Federal investiga se, além de intencionais, os incêndios foram coordenados como numa ação terrorista. O ataque direto às matas e biomas é violência ecocida contra os modos de vida – indígenas, ribeirinhos, quilombolas, seringueiros – que historicamente preservaram seus territórios e plantaram o que torna nosso país o mais biodiverso do mundo.

Enquanto os biomas do país ardiam, em uma sala refrigerada no 4o andar do prédio do Supremo Tribunal Federal as páginas da Constituição Federal que tratam dos direitos indígenas poderiam ser o combustível de uma histórica derrota da própria ideia de um país diverso e multicultural, que foi delineada pela assembleia nacional constituinte em 1988.

A conciliação iniciada pelo ministro Gilmar Mendes sobre o tema do marco temporal, ignorou o fato de que o Supremo já derrubou a tese por maioria em setembro do ano passado e ele permaneceu em silêncio sobre os pedidos da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) para que reconheça que o relator prevento do tema é o ministro Edson Fachin. O Procurador-Geral da República, Paulo Gonet, aceitou ser mero espectador do processo, rompendo com a tradição histórica do Ministério Público Federal (MPF) de defender os direitos indígenas.

A primeira sessão, no dia 5 de agosto, foi marcada pela recusa em delimitar o escopo do que seria discutido. Tudo pode ser negociado, nenhum direito estaria assegurado. A assessora jurídica da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Kari Guajajara, denunciou, na própria sessão, o desrespeito às falas indígenas. “A sensação que eu tenho nestas quatro horas que estamos aqui é que toda vez que nós indígenas falamos, somos refutados. Qual o valor da voz indígena nessa mesa? Como continuar aqui se nós não somos ouvidos?”, disse.

A “conciliação” do STF foi definida pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) como uma arapuca e na segunda sessão de audiências, no dia 28 de agosto, o movimento indígena se retirou da mesa diante da flagrante desigualdade do procedimento: em minoria, os representantes indígenas não tiveram sequer a garantia, comum a qualquer conciliação judicial, de recusar um acordo.

“Em conjunto com suas sete organizações regionais de base, a Apib afirma que os povos indígenas não irão negociar o marco temporal e outras violações contra os direitos indígenas, já garantidos na Constituição Federal de 1988 e na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho”, anunciaram os indígenas.

O juiz instrutor do processo, Diego Viegas, chegou a dizer que a saída da Apib não interrompe a câmara de negociações e que seriam simplesmente chamados outros indígenas para compor a mesa. Kleber Karipuna, coordenador da Articulação chamou a situação de absurda, já que é a Apib que representa os povos originários. “Não se trata de um detalhe, já que o que está em discussão são os direitos constitucionais dos indígenas. Não é concebível uma conciliação que os exclua”, lembrou o Instituto Socioambiental.

O movimento indígena não está sozinho. Amigos da corte apontaram o risco de retrocesso diante da falta de clareza sobre o que está sendo negociado e da condução problemática da mesa. Juristas vêm alertando há meses que a postura do STF ameaça o coração dos direitos indígenas previstos na Constituição de 1988. O relator da ONU para direitos indígenas, José Francisco Cali Tzay, clamou pela suspensão imediata da Lei 14.701. Em petição do dia 28 de agosto, a Apib pediu novamente o encerramento da câmara. É o caminho certo a seguir para reafirmar a autoridade da decisão do plenário do STF que afastou a constitucionalidade da tese do marco temporal.

A imposição de mudanças nos direitos fundamentais previstos em cláusula pétrea nos artigos 231 e 232 da Constituição pode passar como uma boiada ou como um incêndio florestal: sem possibilidade de reação e contenção pela sociedade ou pelos maiores afetados, os povos indígenas. Para muitos grupos indígenas que até hoje vivem em isolamento e não estão em áreas reconhecidas ou protegidas, como o Opi já mostrou em nota técnica enviada ao Congresso Nacional no ano passado, não é exagero tratar a Lei do Marco Temporal como Lei do Genocídio. É do massacre e desaparecimento desses grupos que se trata.

E trata-se também de uma ameaça à vida em todo o Brasil. Apesar do avanço do fogo sobre as Terras Indígenas no país, esses territórios continuam a desempenhar um papel fundamental na preservação dos ecossistemas, contribuindo para a mitigação dos efeitos das queimadas que afetam tanto áreas rurais quanto urbanas. Se os territórios indígenas são hoje as áreas mais preservadas do país, mesmo com ataques constantes e cada vez mais intensos de grileiros, madeireiros, garimpeiros e fazendeiros, o enfraquecimento dos direitos territoriais no STF pode tornar a corte, tão importante na defesa da democracia nos últimos anos, em uma aliada dos incendiários de biomas. Ao violar as premissas constitucionais da territorialidade indígena, a mesa construída por Gilmar Mendes não demonstra nenhuma capacidade conciliatória. É uma câmara de combustão de direitos e do futuro.

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