Refiro-me ao povo Gamela a quem tentaram, recentemente, decepar-lhes o direito de ser. O povo Gamela resistiu e certamente resistirá.
Os povos indígenas isolados são povos que decidiram, em algum momento, pela estratégia conceituada por nós de “isolamento”. Em geral, vivem hoje em regiões de difícil acesso, evitam e rechaçam, conscientemente, iniciativas forçadas de contato. Esses povos possuem vulnerabilidades muito específicas, dentre elas, a dificuldade de terem sua existência reconhecida, provada, suas formas peculiares de manifestação legitimadas. O conceito de “isolamento”, por nós tachado, está estreitamente vinculado ao desafio de provar sua existência enquanto um povo indígena sujeito de direitos. Se estão isolados, não aparecem, como manifestariam sua existência?
É justamente por essa dificuldade de se fazerem existentes, ouvidos, perante à sociedade majoritária, que os Estados devem adotar medidas muito específicas, especiais.
Ocorre que tomamos conhecimento tardiamente das violências praticadas contra os povos isolados (inclusive esbulho territorial). Quando constatada a violência, passou tempo suficiente para a impunidade se estabelecer e se transmutar em legalidade. Antes de provar a violência, temos que provar que existem. Os direitos dos povos indígenas isolados, muitas vezes, não são efetivados pois sua existência não é reconhecida.
A coletividade Gamela, conforme suas próprias estratégias, luta para provar sua existência enquanto sujeitos de direitos indígenas, inclusive os territoriais. Na década de 1970, tiveram seus territórios definitivamente invadidos, descaradamente esbulhados, já se passaram 40 anos, a impunidade se estabeleceu, se transmutou em legalidade. O povo Gamela e todos os outros povos indígenas que lutam em mesmas conjunturas de reafirmação enquanto coletividades indígenas, deveriam usufruir de uma atenção especial por parte do Estado, tanto quanto os povos isolados.
Para a efetivação de direitos, os povos isolados devem ter sua existência previamente provada, convencida, amplamente e localmente reconhecida, caso contrário, sua vulnerabilidade aumenta consideravelmente. Sem esse reconhecimento, legitima-se qualquer tipo de violência contra eles praticada, pois (convenientemente) não existem. O mesmo ocorre hoje com o o povo indígena Gamela.
Os povos isolado são sujeitos ativos no esforço de reconhecer que existem, manifestam sua existência por meios bastantes peculiares, por exemplo, através de vestígios propositalmente produzidos, armadilhas, tapagens em caminhos, bordunas fincadas no chão, claros avisos: “eu existo aqui e daqui você não pode passar” .
Os questionamentos desferidos por determinadas esferas da sociedade sobre se determinado povo isolado existe, ou não, originam-se a partir dos mesmos mecanismos que questionam se os Gamelas são índios ou não, portanto se usufruem de direitos, sobretudo os territoriais. Questionam o inquestionável.
O simples fato dos Gamelas se autoidentificarem como povo indígena deveria ser suficiente para a garantia de seus direitos. Aliás, isso é Lei, garantido constitucionalmente, é indiscutível: o coletivo Gamela é um povo indígena! (Decreto 5051/2004 que promulga a Convenção n.169 da OIT)
A atenção dada pelo Estado aos povos indígenas isolados deveria ser a mesma proporcionada aos povos – denominados por muitos – “emergentes” ou (supostamente) “ressurgidos”.
Aliás, é interessante observar que os termos “isolados”e “ressurgidos” ou “emergentes” dialogam perfeitamente entre si, são conceitos colonialistas, incipientes e unilaterais. Ambos os conceitos originam-se nas mesmas concepções equivocadas de indianidades construídas pelo branco, são conceitos irmãos, nascidos no mesmo ventre colonial. Os povos assim “classificados” (isolados e ressurgidos ou emergentes) resistem em conjunturas comuns: o esforço de provar sua existência e reconhecer seus direitos.
O fato é que o Estado brasileiro e a sociedade majoritária despendem bastante atenção aos povos indígenas isolados (em que pese as debilidades dessa atenção). Além dos marcos legais existentes, as visões exóticas, equivocadas sobre esses povos, como ideais de indianidade, contribuem também para esse direcionamento da política indigenista.
Entretanto, negligência-se atuar em situações onde é questionada a existência desses povos “emergentes”, tais como os Gamela. Portanto e convenientemente, negligência-se seus direitos.
No caso dos povos isolados, já são consolidadas práticas e normativas específicas para reconhecê-los. É reconhecida a necessidade de atenção especial. No caso dos povos que lutam para ter sua identidade e seus direitos amplamente reconhecidos ocorre exatamente o oposto.
A luta dos povos indígenas para ter reconhecida sua existência e seus direitos, tal como os Gamela, não difere muito dos desafios para reconhecimento oficial da existência dos povos isolados. Por óbvio, é necessário considerar as distintas dimensões históricas existentes entre essas diferentes expressões de resistência e estratégias indígenas.
Os Gamela e os povos indígenas isolados são contemporâneos, não são contrapontos, extremos de uma inexistente linha evolucionista/cultural. Esses povos são vítimas da mesma estratégia opressora, a de invisibilizar a presença indígena, sobretudo em regiões onde estão envolvidos grandes interesses fundiários.
Sim, o povo Gamela e os povos isolados estão sujeitos à mesma vulnerabilidade: sua imposta invisibilidade, que acarreta na constante luta para provar sua existência.
Por: Fabrício Amorim