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Nota técnica do Opi aponta risco de genocídio em artigo 28 do PL 2903, que tramita no Senado

Registros de Povos Isolados
Registros oficialmente reconhecidos de povos isolados no Brasil

Published by Opi

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Documento foi enviado à frente parlamentar indígena como subsídio para as discussões no Congresso sobre o projeto que institui o marco temporal

Em nota técnica enviada à frente parlamentar indígena, o Opi – Observatório dos Povos Indígenas Isolados – aponta risco de genocídio de povos isolados no artigo 28 do Projeto de Lei 2903/2023, que tramita no Senado da República após ser aprovado no plenário da Câmara Federal – onde era o PL 490/2023. O projeto que tenta implementar o marco temporal para demarcação de terras indígenas contém também outros retrocessos, como a flexibilização da política de não contato, que prevê o respeito à recusa dos grupos isolados em fazer contato com a sociedade nacional.

Na nota técnica, o Opi aponta que o artigo 28 do PL 2903 abre brecha para a volta dos contatos forçados com povos em isolamento e isso representa risco concreto de genocídio, de acordo com a Convenção Internacional para Prevenção e Repressão ao Genocídio, que vigora no Brasil através da Lei 2889/1956. O artigo prevê que “no caso de indígenas isolados, cabe ao Estado e à sociedade civil o absoluto respeito a suas liberdades e meios tradicionais de vida, devendo ser ao máximo evitado o contato, salvo para prestar auxílio médico ou para intermediar ação estatal de utilidade pública”.

O Opi aponta que a previsão de “intermediar ação estatal de utilidade pública” é um retorno a políticas que, na época da ditadura militar, provocaram a morte de milhares de indígenas e até o desaparecimento de grupos inteiros. “Evidentemente, utilidade pública se refere a toda e qualquer atividade (supostamente) de interesse público, tal como rodovias, hidrelétricas, mineração, projetos de colonização, agropecuária, entre outras iniciativas desenvolvimentistas. (…) Importante lembrar que a implementação de grandes projetos de (suposto) interesse público nas décadas de 1970 e 1980 – assim como nas décadas anteriores – justificaram o contato forçado com povos isolados e ocasionaram subsequentes processos de mortes em massa”.

“Há inúmeros casos, tal como do povo Panará, contatado e violentado em 1975, no contexto da construção da BR-163 (Cuiabá-Santarém); dos Waimiri Atroari, contatados após o uso de bombas pelo Exército brasileiro durante a construção da rodovia BR-174 (Manaus-Boa Vista); do povo Matis, no oeste do Amazonas, cuja redução populacional do pós contato quase os leva ao completo extermínio, no contexto de construção de trecho da rodovia Perimetral Norte em meados da década de 70; dos diferentes grupos locais Awá no Maranhão, contatados e resgatados ao longo das década de 1970 e 1980 em trechos de floresta que restaram em região devastada pela construção da ferrovia Carajás”, diz a nota técnica.

Por causa das consequências historicamente genocidas do contato forçado, o Brasil abandonou essa prática em 1987, numa mudança que foi internacionalmente pioneira. Desde o estabelecimento da política de não contato, é “proibida toda e qualquer ação ou projeto desenvolvimentista em território de indígenas em isolamento, portanto, o contato forçado nos casos de (suposto) interesse público”, sustenta o documento do Opi.

O parágrafo segundo do artigo 28 também preocupa a organização indigenista, porque prevê a possibilidade de contratação de “entidades particulares, nacionais ou internacionais” para realizar o contato forçado com comunidades indígenas isoladas. A previsão, diz o Opi, “dá espaço a outra grave violação de direitos humanos dos povos indígenas isolados, pois permitiria ao Estado brasileiro terceirizar, sob sua intermediação, o contato com povos indígenas isolados nos casos de ações de utilidade pública. A lei facilitaria, por exemplo, que grupos religiosos extremistas, sob a cortina oficial do Estado brasileiro, realizassem contatos forçados com esses povos e grupos isolados. A aliança entre o Estado e a Igreja em iniciativas de contato e evangelização de povos indígenas não é nova e provocou conhecidamente inúmeros casos de etnocídio e genocídio. São práticas já abandonadas pela Igreja Católica desde meados do século XX; e na década de 90, o Estado brasileiro extinguiu convênios e cooperações técnicas com grupos fundamentalistas”.

O documento aponta que o artigo 28 viola também a Constituição de 1988, que reconheceu os direitos dos povos indígenas aos próprios territórios e de autodeterminação – se organizar e viver do modo que decidirem. “Além da Constituição e da política pública de não contato, o texto do artigo 28 viola a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas, a resolução 44/2020 do Conselho Nacional dos Direitos Humanos”.

Para o Opi, “o Brasil, que desde 1987 inovou ao superar o modelo de atração e pacificação em favor do paradigma de proteção e não contato por respeito à autodeterminação, está prestes a retomar a política da ditadura militar, que promoveu operações letais de contato. Ressurge a ideologia da integração nacional. O artigo 28 do projeto, ao flexibilizar a política de não-contato que garante a sobrevivência dos grupos isolados pode, portanto, promover uma volta aos tempos da ditadura. Em caso de aprovação, representará mais um gigantesco retrocesso em nossa legislação, bem como um total desrespeito às diferenciadas formas de vida e expressão e às decisões e territórios dos povos indígenas isolados, conquistados com muita luta pelos povos indígenas e pela sociedade civil no contexto de redemocratização do país. Deixá-lo passar será uma vergonha para a imagem política do Brasil no mundo”, conclui o documento.

Os povos indígenas isolados são os que optam por viver de forma que impossibilita contatos diretos, diálogos próximos, reuniões, assembleias ou audiências. Vivem de forma fisicamente apartada de outros coletivos, o que não significa necessariamente que haja ausência de relações. Muitas vezes eles fazem advertências inequívocas de que rejeitam o contato. Deixam propositalmente vestígios, tapagens e armadilhas, recados explícitos de negação à invasão e destruição de seus territórios.

A própria decisão de fuga e de rechaço a contatos forçados é uma clara expressão dessa vontade. Na política pública da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) são referidos pela sigla PII (Povos Indígenas Isolados). No Brasil, o Estado reconhece 114 registros da presença destes povos, sendo que 28 têm sua existência oficialmente confirmada, após um processo de localização que deve ser feito por técnicos especializados. Portanto, 86 registros oficialmente considerados ainda carecem de pesquisas, permanecem “por confirmar”, o que eleva os níveis de vulnerabilidade desses grupos. É importante lembrar que muitas lideranças, povos e suas organizações, apontam essa presença para além dos dados oficiais registrados, sistematizados e apresentados pela Funai. Por isso, esse número de grupos isolados pode ser expressivamente maior do que o que é registrado oficialmente.

“O isolamento é consequência da letalidade da colonização e expressão da rejeição de alguns grupos indígenas à convivência com a sociedade nacional. Trata-se de uma declaração de recusa que deve ser respeitada pelo Estado, cujo dever único é efetivar a proteção de seus territórios e garantir-lhes o direito à autodeterminação). Diante do direito ao isolamento e do direito dos indígenas às suas terras, não há negociação possível. Reinstaurar a política do contato significa reeditar condições objetivas para o genocídio dos povos isolados”, defende o Opi.

O projeto de lei ainda não tem previsão de data para ser votado no Senado. Ele está sendo analisado em duas comissões da casa: a de Constituição e Justiça e a de Agricultura e Reforma Agrária, com relatoria da senadora Soraya Thronicke, do Podemos do Mato Grosso do Sul.

Veja a íntegra da nota técnica do Opi


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