[…] acho que ele vai ficar lá sozinho mesmo e vai ter suas dificuldades para sobreviver lá dentro (quando ficar velho). Acho que ele está pensando nisso muito mais do que a gente, pensando em como vai lidar com essa situação, porque vai precisar caçar, ir atrás de alguma coisa para se alimentar. A gente acha que, talvez, nesse momento ele vai pedir ajuda e espero que a gente esteja ali perto para ajudá-lo nesse final de vida (Altair Algayer em depoimento para o livro de Ricardo e Gongora, 2019: 237).
Mais um indígena, o último representante de seu povo, faleceu. No passado recente foi vítima de um processo de extermínio atroz, consequência da instalação de grandes fazendas patrocinadas pelo Estado. Presenciou a morte de seu povo, perdeu seu território para as pastagens e foi condenado a passar o resto da vida em uma pequena porção de floresta interditada pela justiça, cercada por grandes fazendas na região do rio Corumbiara, em Rondônia.
Por resistir com extremo afinco a quaisquer empreitadas de contato, faleceu sem deixar saber qual etnia a que pertencia, e nem as motivações dos buracos que escavava dentro de sua casa. Foi, por isso, chamado curiosamente de “Índio do Buraco”. Com uma vida solitária, parece ter planejado até mesmo a sua morte. O “Índio do Buraco” expressava claramente sua opção pelo afastamento sem nunca dizer uma única palavra que permitisse sua identificação com alguma língua indígena conhecida.
Os primeiros vestígios desse povo foram encontrados em meados da década de 1990, pela Frente de Proteção Etnoambiental (FPE) Guaporé, da Funai. Encontraram roças destruídas por fazendeiros e restos de casas que indicavam ter sido arrastadas por tratores.
Os fazendeiros, como se constatou por meio de relatos posteriores, haviam contratado pessoas para atirarem nos indígenas e depois remover com tratores as evidências da aldeia, tentando ocultar sua presença das buscas da equipe da FPE Guaporé. Os culpados pelo massacre jamais foram punidos (Reel, 2010 apud Matos et ali 2021, 136).
Desde então, uma luta judicial foi travada para a garantia da vida do “Índio do Buraco” e da floresta remanescente onde vivia. A restrição de uso denominada Terra Indígena (TI) Tanaru foi estabelecida pela primeira vez em 1997, sendo renovada sucessivamente, sempre sob decisão judicial. A atualmente vigente é a Portaria 1.040/2015, de 16 de outubro, que prorrogou a interdição da área por mais 10 anos.
Ficaremos atentos para que a floresta que ainda resiste na TI Tanaru seja preservada em memória à triste história de mais um povo violentamente condenado ao desaparecimento. Mais um povo que deixa o mundo sem compartilhar seus cantos. Uma história cuja memória deve ser transmitida às novas gerações para que jamais se repita. O Opi seguirá lutando para garantir que o indígena da TI Tanaru tenha paz ao menos em sua morte, que suas decisões continuem sendo respeitadas, e que seu território não seja violado pela gana do agronegócio. A morte do “Índio do Buraco” significa, por um lado, mais um capítulo trágico do persistente processo de genocídio que historicamente aflige os povos indígenas e, por outro, o seu derradeiro e mais extremo ato de resistencia.
- Com sua morte, a TI Tanaru deve continuar interditada ao menos até que estudos arqueológicos e antropológicos sobre a cultura material e seu modo de ocupação ambiental sejam realizados.
- A área da TI Tanaru deve seguir preservada como um memorial, em respeito à trajetória de resistência de seu residente solitário e para lembrar a todos a tragédia do genocídio indígena — para que não se repita jamais.
- É preciso garantir que seu corpo seja respeitado, e que seja feito o seu retorno para o interior da TI Tanaru, de modo que sua passagem seja realizada com respeito às suas tradições culturais, claramente expressas em seus últimos momentos. Que os trabalhos de perícia sejam céleres.
Em tempo, prestamos uma especial homenagem ao indigenista Altair Algayer, o representante dos “brancos” com quem esse indivíduo teve mais relação em vida. Foi das mãos dele e de sua equipe que recebeu algumas ferramentas e sementes para que pudesse incrementar sua qualidade de vida. Altair respeitava e fazia garantir sua autonomia, nunca tentou uma aproximação forçada, respeitou desde sempre suas decisões pelo isolamento, considerando-a expressão máxima de suas vontades. Algayer celebrou suas conquistas a cada roçado novo estabelecido ou artefato produzido, e se preocupou diuturnamente com o bem-estar do “Índio do Buraco”. A Altair, nosso profundo respeito.
Matos, B. de Almeida; Pereira, B.; Ribeiro Santana, C.; Amorim, F.; do Val Santos, L. L. C.; Cravo de Oliveira, L. (2021). Violações dos direitos à saúde dos povos indígenas isolados e de recente contato no contexto da pandemia de COVID-19 no Brasil . Mundo Amazónico, 12(1), 106-138.
Reel, M. (2010). O último da tribo: a epopeia para salvar um índio isolado na Amazônia. Companhia das Letras: São Paulo.
Ricardo, F.; Gongora, M. (Orgs.). (2019). Cercos e Resistência: povos indígenas isolados na Amazônia brasileira. ISA: São Paulo.