Na véspera do julgamento e do Dia Internacional dos Direitos Humanos, o Congresso Nacional tenta atropelar a corte e os povos indígenas pautando a PEC 48
O movimento indígena brasileiro tem, com razão, denominado a Lei 14.701 como a “Lei do Genocídio”. Essa legislação, aprovada em reação à declaração de inconstitucionalidade da tese do marco temporal pelo Supremo Tribunal Federal (STF), desencadeou um experimentalismo constitucional perigoso, marcado pela exclusão e pela ameaça direta à sobrevivência dos povos originários. No próximo dia 10 de dezembro, dia internacional dos direitos humanos, o tema volta à pauta no plenário da corte e os ministros têm a oportunidade histórica de reafirmar sua decisão anterior e enterrar a tese que serve à desconstituição de direitos dos povos indígenas brasileiros.
Na véspera do julgamento, o Congresso Nacional, numa clara tentativa de retrocesso em direitos fundamentais e em desafio à autoridade da Corte Suprema, colocou em pauta a PEC 48, que pretende inserir no texto constitucional a já declarada inconstitucional tese do marco temporal. Em uma manobra que atropela o regimento interno da casa, os congressistas anunciam a intenção de aprovar o texto no plenário sem os ritos. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) considera que a reabertura dos debates sobre o tema no Congresso é mais um capítulo da disputa entre o os poderes, no qual os povos indígenas seriam os principais prejudicados.
O processo iniciou-se com uma Comissão Especial de conciliação imposta unilateralmente pelo ministro Gilmar Mendes. Esta tentativa de “autocomposição” falhou em garantir a participação efetiva dos povos indígenas, que sequer conseguiam compreender o que estava sendo discutido. A assessora jurídica Kari Guajajara denunciou que a voz indígena era constantemente refutada. Em protesto contra a desigualdade do procedimento – que não garantia sequer o direito de recusar um acordo – o movimento indígena, representado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), retirou-se da mesa, classificando a “conciliação” como uma “arapuca”. Não há como negociar direitos fundamentais garantidos por cláusula pétrea na Constituição de 1988.
Para os 115 grupos indígenas isolados que hoje são identificados no Brasil a Lei do Genocídio concretiza o risco de massacre e desaparecimento. O reconhecimento definitivo do marco temporal significaria que povos isolados, cuja presença fosse confirmada após 5 de outubro de 1988, teriam seu direito à terra anulado. A política indigenista brasileira adota o “não-contato” como diretriz primordial, visando garantir a integridade física desses povos, que não possuem memória imunológica para doenças infecciosas corriqueiras. Por estarem isolados, eles não participam do processo administrativo de demarcação de suas terras.
A imposição do marco temporal recairia sobre os grupos técnicos da Funai o ônus dificílimo de comprovar a localização exata da posse em 05 de outubro de 1988. Muitas populações isoladas, como os Akuntsu e Canoê, tiveram sua existência constatada e confirmada após 1988. Um dos casos mais notórios de genocídio indígena no país ocorreu em 1996, com a localização do último sobrevivente de um povo, o indígena de Tanaru, conhecido como índio do buraco.
Atualmente, a Funai reconhece 115 registros, sendo 86 ainda em fase de pesquisa, e pelo menos a metade desses registros está fora ou parcialmente fora de Terras Indígenas demarcadas. Caso o marco seja aprovado, o que impediria a destruição dos vestígios capazes de comprovar a existência dessas pessoas, uma vez que as Restrições de Uso, única ferramenta capaz de protegê-los, foram criadas após 1988? Este cenário configura uma verdadeira tragédia para a garantia de seus direitos.
A exclusão dos povos indígenas e o enfraquecimento de seus direitos territoriais não são apenas problemas institucionais, mas também civilizatórios. Não é coincidência que o julgamento da Lei do Genocídio seja agendado pouco tempo após a realização da Conferência da Onu sobre o clima no Brasil, onde os principais avanços obtidos foram as proteções de 20 territórios e onde foi reconhecido oficialmente o papel da demarcação de terras indígenas no combate à crise climática.
Os dados científicos comprovam que territórios indígenas são os mais eficientes na proteção de florestas, superando unidades de conservação de proteção integral. Ao violar as premissas constitucionais da territorialidade indígena, a lei do Marco Temporal é instrumento dos incendiários de biomas e aquecedores de clima. A terra, para os povos originários, não é um objeto ou propriedade, mas sim a base de sua existência, uma relação simbiótica, espiritual e profunda que permite a reprodução de seus usos, costumes e tradições.
O que está em jogo não é apenas um detalhe fundiário, mas a possibilidade de “ser” para os povos originários. É inconcebível que a ganância individual de uma minoria de ruralistas se sobreponha ao direito à vida e à diversidade constitucionalmente garantida. A opinião pública brasileira já demonstrou, em diversas oportunidades, o entendimento hegemônico de que é preciso proteger as terras indígenas e os direitos dos povos. O povo brasileiro, ao contrário da minoria ruralista que concentra poder econômico e político desproporcional, entende que garantir os direitos territoriais é garantir a sobrevivência humana em face da crise climática.
O julgamento é o momento para que a Suprema Corte, que teve papel tão fundamental nos últimos anos na defesa da democracia e da Constituição, reafirme o julgamento anterior em que o marco temporal foi declarado inconstitucional. Qualquer opção diferente dessa pavimentaria o caminho para mais uma etapa sinistra de genocídios anunciados. O Brasil, durante a ditadura militar, foi responsável por inúmeros massacres de povos indígenas e a memória dessas tragédias está na base da própria ideia de um país de diversidade cultural, consagrado na Constituição pós-ditatorial.
É imperativo que, no próximo dia 10, o STF honre a importância do Dia Internacional dos Direitos Humanos, reafirme a autoridade de sua decisão anterior que afastou o marco temporal e reitere a intenção da Constituição Federal de proteger a diversidade socioambiental do Brasil.


